Traições Amorosas

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Culturas se preservam por conta da sabedoria coletiva (e do apego também)

alegruber.substack.com

Culturas se preservam por conta da sabedoria coletiva (e do apego também)

A sabedoria coletiva que encontrou maneiras de sobreviver e prosperar em um contexto e formou um padrão cultural, é a mesma que convida o coletivo a trair o status quo que não faz mais sentido.

Alessandro Gruber
Jan 30
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Culturas se preservam por conta da sabedoria coletiva (e do apego também)

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Imagem from the showcase at the Isola Design District steers a new paradigm for the design world in the form of pieces that reinvent materiality and creative processes.

Apego. Traição. Luto. Crença. Morte. Renascimento. Medo. Coragem.
Quando você acabou de ler essas palavras, rapidamente sua mente deve ter te trazido memórias e significados relacionados à vida de um indivíduo humano, talvez você mesmo.
Mas, essas palavras, conceitos e significados são extremamente necessários para as organizações, sociedades e coletivos que lidam hoje com um contexto muito complexo, com mudanças e riscos sem precedentes.
(e continuam sendo importantes para os indivíduos também).

Quero compartilhar aqui, de um jeito simples, profundo e leve, o quanto as lideranças das organizações e as organizações em si necessitam criar espaços para dialogar e lidar com esses conceitos para continuarem sobrevivendo e prosperando no contexto em que a gente vive.

Não é a toa que essa newsletter chama-se Traições Amorosas. Sem traição (aos padrões culturais que não mais fazem sentido), não evoluímos. Sem amor à vida, não criamos a coragem para atender aos chamados de transformação que ela nos faz.
Mas, trair e amar trazem consigo riscos ao lidar com o desconhecido e o medo de ser excluído pela organização / sociedade que está trabalhando para sustentar padrões culturais que não mais ajudam o coletivo a evoluir. E, trair esses padrões, também traz consigo o pavor de colocar a nossa própria vida em risco, pois teremos que abrir mão do que nos trouxe até aqui.

Trabalhar com evolução de cultura foi, por muito tempo, tratada de modo displicente ao ignorar esses sentimentos e conceitos envolvidos em qualquer situação onde organismos vivos precisam se adaptar e se transformar para sobreviver ou continuar prosperando quando o contexto muda.
Essa displicência colocou as organizações em uma situação muito perigosa: elas perderam sua capacidade de aprender e se envolver com o contexto. Porque elas foram educadas a se identificarem como máquinas. Não como organismos, apesar da denominação que damos a elas.

Mas, essa displicência não foi percebida, porque até há algumas décadas atrás, as grandes mudanças de contextos aconteciam num ritmo parecido com as mudanças geracionais de pensamento. Então, quando uma nova geração assumia a influência e o poder, essa nova mentalidade e adaptabilidade vinham junto. Agora, não importa se você tenha 20 e poucos anos, você certamente já viveu, pelo menos, uns dois mundos distintos e teve que mudar completamente sua maneira de se envolver com ele para continuar sobrevivendo e prosperando. Quem tem uns 40 e poucos anos, como eu, já deve ter vivido uns três ou quatro mundos.
Ou seja, não dá mais para esperar uma nova geração. Eu, você, nós temos que aprender a fazer transformações radicais e a não mais desejar que o modelo atual que parece nos manter vivos perdure por toda nossa vida. E pra isso, precisamos aprender a trair, à serviço da vida.

Essa não é uma ideia ou pensamento meu, ela me afeta e é a base do meu trabalho. E eu quero citar algumas pessoas aqui, para reconhecer e para você também pesquisar sobre o trabalho delas se quiser se aprofundar: Humberto Maturana, Joseph Campbell, Humberto Mariotti, Margaret J. Wheatley, James Hillman, Ailton Krenak, Tyson Yunkaporta, e em especial três amigos e parceiros de trabalho Artur Tacla, Marcio Svartman e Vicente de Góes que se dedicam a expressar esses conceitos em pesquisa, estudo e narrativas claras que ampliam meu entendimento.

Nesse texto, vou partir da síntese e pensamento que veio do trabalho do Marcio Svartman, com quem dialogo, aprendo e cocrio, quase que diariamente em nosso trabalho, esse olhar da traição nos movimentos de transformação organizacional.

Cultura é fruto da sabedoria de um coletivo

Quando uma organização, uma família, ou qualquer coletivo vive uma grande mudança em seu mundo e consegue sobreviver, aprender e prosperar, a sabedoria criada por essa experiência é o alimento primordial da cultura. A cultura é como essa sabedoria passa a se expressar em histórias, rituais, símbolos, processos e maneiras que vão sendo aprendidas e imitadas naturalmente por novas pessoas que passam a fazer parte desse coletivo, sem que ninguém as ensine (como em sala de aula).

Quando precisamos empreender uma mudança cultural, a narrativa mais desnecessária e a que coloca o movimento em risco é tratar de modo depreciativo a cultura atual. Fazer isso é ignorar explicitamente a sabedoria de um coletivo.

O que lideranças e consultorias precisam reconhecer e perceber é que a mesma sabedoria que criou os padrões culturais atuais, também está trabalhando ativamente para evoluir esses padrões e já está nutrindo os embriões do novo status quo.

Essa sabedoria, que preserva e evolui ao mesmo tempo, precisa ser reconhecida, percebida e apenas nos relacionando com ela conseguiremos empreender uma evolução real.

Cultura é também fruto de apego

Como a cultura é fruto da sabedoria de um coletivo que conseguiu sobreviver e prosperar em um novo contexto, muitas vezes ele pode criar um apego a algum padrão cultural. O apego, provavelmente, venha da conexão identitária que esse coletivo cria com algum padrão.
A sabedoria fez o coletivo sobreviver, essa sabedoria foi traduzida através de algum símbolo, ritual ou padrão de relação, esse padrão/símbolo/ritual passa a fazer parte tão corriqueira do coletivo que deixa de ser percebido como um padrão aprendido e passa a ser considerado como “a realidade”, “o único jeito” ou “o certo”, passa a ser a identidade, o que faz o coletivo se identificar como um coletivo, isso cria o apego ao padrão, pois, agora, essa padrão parece ser o próprio coletivo ou o que o mantém vivo.

O padrão cultural apegado à identidade coloca o coletivo em risco, pois ele passa a investir tempo e energia em preservar o padrão vivo, mesmo quando o contexto grita que ele não faz mais sentido. Coloca-se em risco o poder da adaptabilidade às transformações do contexto. O coletivo passa a viver para sustentar um padrão, até o ponto de sua vida se tornar fictícia: todos sabem que ninguém mais acredita ou pratica algo, mas todos fingem que praticam e criam ainda mais rituais e processos para simular que o padrão continua vivo e fazendo sentido.

Para nos desapegar, precisamos de ajuda. A ajuda, a conexão e a relação com referências externas não servem para empurrar um novo padrão. Servem para convidar novamente a sabedoria coletiva adaptativa para o centro da sala. Servem para convidar o coletivo a refletir e voltar a perceber os padrões como padrões: expressões da sabedoria coletivo que foram sendo preservados ao longo do tempo enquanto faziam sentido. Alguns ainda fazem, outros não fazem mais.
Servem para resgatar a coragem para o coletivo empreender traições aos padrões apegados e criar novos padrões a partir da sabedoria que está sendo aprendida ao se relacionar com o contexto atual em transição.

O Convite à Traição e o Acolhimento ao Luto

Ao voltar a se relacionar com o contexto com mente aberta, voltar a aprender e a perceber que novos padrões são necessários, o coletivo empreende um movimento de mudança.

O padrão emocional que acompanha o grupo de pessoas que está representando a sabedoria adaptativa do coletivo é a emoção da traição.

Traição, porque o grupo passa a propor um movimento de alto risco: abrir mão do que o coletivo acredita que o mantém vivo, para abraçar um novo padrão que não traz consigo nenhuma garantia.
Traição, porque esse mesmo grupo passa a descumprir as regras, a moral e a maneira de pensar do status quo.
Traição, porque esse mesmo grupo passa a ser excluído pela grande energia que está sendo investida por outras pessoas para sustentar o status quo.

Esse grupo de “traidores amorosos”, precisa ser acolhido, abrindo espaço para falar sobre traições e o grupo criar repertório para lidar com isso. A ressignificar a traição como o movimento que justamente irá fazer o coletivo continuar tendo chance de sobreviver e prosperar.

E, enfim, quando alguma traição consegue ser empreendida, o luto também vem junto.
Ao mudar um padrão cultural, estamos reconhecendo uma mudança de consciência e de percepção sobre a realidade, isso provoca um deslocamento identitário. Logo, uma nova identidade nasce, a identidade anterior morre.
Luto.
Reconhecer e ritualizar esse luto ao longo do movimento de mudança é fundamental.

Em síntese…

Mudança e adaptabilidade contínua é o que nos mantém vivos. Como organismos vivos, as organizações precisam se adaptar continuamente. Se adapta quem está se relacionando e tem muitos feedback loops com o contexto (múltiplos stakeholders) - aprendizagem. O aprendizado gera padrões culturais, manifestados por narrativas, símbolos, rituais, estruturas e processos. Os padrões tendem a se preservar ao longo do tempo, pois fazem sentido. Quando o contexto muda radicalmente, a sabedoria da organização promove, para sua sobrevivência, movimentos simultâneos: preservação e evolução. Como parceiros e líderes de transformações, precisamos acolher o movimento de preservação e alimentar o movimento de evolução. Alimentar o movimento da evolução pressupõe reconectar a organização a sua sabedoria adaptativa, ampliando seu envolvimento com o contexto, stakeholders e criando novos feedback loops. Pressupõe, também, fortalecer as lideranças que perceberam a mudança que faz sentido e estão se sentindo traidoras e traidores do status quo. Pressupõe, ainda, acolher o luto que vem com a perda de padrões que foram tão afetivamente cuidados ao longo dos anos e trazer a alegria dos novos nascimentos que fazem com que a vida continue.

Traidoras e traidores: sigam corajosos!

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